Recentemente a consultora e pesquisadora norte-americana Kat Patillo viajou até Sobral para conhecer de perto a experiência dessa cidade que tanto nos inspira e onde temos a nossa sede. Agradecemos à Kat que nos presenteou com o relato da sua experiência por lá! Confira Abaixo
Segredos do Sucesso de Sobral
Por Kat Pattillo*
*Kat Pattillo apoia e escreve sobre lideranças educacionais responsáveis por transformações sistêmicas no hemisfério do Sul. Recentemente, apoiou a área de Comunicação e Parcerias do Centro Lemann de Liderança para a Equidade na educação em sua estratégia de coinvestimentos. É cofundadora da Metis, organização que forma uma rede de líderes educacionais no Quênia, e ex-professora na African Leadership Academy, na África do Sul. Além disso, pesquisou sobre coalizões educacionais bem-sucedidas na Índia e no Brasil (via Universidade de Oxford). Tem apoiado organizações como Imaginable Futures e ALforEducation Network.
A estrada para Sobral é cortada por margens de rios secos e cobertos de terra batida. A medida que nos afastamos de Fortaleza, os galpões industriais da Amazon e da Fedex vão dando lugar às carnaúbas, árvores típicas daquele ambiente árido, seguidas de alguns poucos postos de gasolina e comunidades de casinhas com redes penduradas nas varandas. Recentemente sob um calor que parecia ser de 37 graus, cortinas de fumaça subiram sobre as montanhas rochosas, enquanto o fogo queimava os arbustos secos que deixavam a terra carbonizada.
Essa é a zona rural do estado do Ceará no Brasil, onde um improvável sucesso aconteceu. Em uma pequena cidade de cerca de 200.000 pessoas, a quatro horas da capital do estado, a maioria das crianças estava em salas de aula mas não estavam sendo alfabetizadas como era esperado – mesmo cenário de tantos outros lugares no Hemisfério Sul. Mas nesta cidade, algo diferente aconteceu, durante um período de 12 anos uma decisão política produziu uma grande reforma educacional no município. Em 2005, Sobral estava na 1.366 posição entre 5.570 municípios do Brasil que ofereciam a melhor educação básica, em 2017, passou a ocupar o primeiro lugar no país no ensino fundamental e médio.
Eu fui a Sobral em Outubro de 2022 como parte de uma viagem organizada pelo Centro Lemann de Liderança e Equidade na Educação, com um grupo de lideranças escolares vindos de várias partes do estado de São Paulo, possíveis financiadores, e membros da organização Parceiros da Educação. Visitamos escolas de educação infantil, ensino fundamental e ensino médio, e nos reunimos com lideranças do município, incluindo Ivo Gomes, atual prefeito e ex-secretário de Educação de Sobral.
A pergunta que todos queriam saber era: o que deu certo em Sobral? Pelo que vi e compreendi, podemos resumir seu êxito em 10 etapas principais:
1. Vontade Política: questão mais importante, para que as reformas comecem, os políticos, tomadores de decisão municipais, precisavam priorizar seu tempo e orçamento para a educação – ao lado de questões urgentes como saúde, habitação, empregos e violência. O ex- prefeito Cid Gomes foi enfático nesse ponto.
2. Continuidade: apenas vontade política não é suficiente. Em Sobral, uma coalizão estável de centro-esquerda conseguiu manter o mesmo projeto político no poder por mais de 25 anos. (Cid Gomes foi prefeito de 1997 a 2004, Leônidas Cristino de 2005 a 2010, Veveu Arruda de 2010 a 2017 e Ivo Gomes de 2017). Como resultado, os prefeitos poderiam planejar e implementar políticas de forma mais permanente e não apenas resumidas a uma única gestão.
3. Líderes Escolares com Coordenadores de Ensino: nas escolas brasileiras, o Diretor possui papel essencial dentro das escolas e Sobral investiu nisso. Lá o Diretor é o responsável pela gestão escolar, e supervisiona os fluxos, operações, finanças e funções administrativas. A figura do Coordenador Pedagógico passa a ser o responsável pelo o que acontece dentro da sala de aula, embora tenha também o acompanhamento próximo do Diretor. Na escola de educação infantil que visitamos, quatro Coordenadores Pedagógicos circulavam para ajudar os professores a preparar planos de aula, observar aulas e orientar professores. Na minha opinião, esse investimento no apoio intensivo aos professores é o ingrediente mais importante para o sucesso da reforma. Embora muitas outras escolas brasileiras tenham Coordenador Pedagógico, Sobral as usou de forma particularmente eficaz.
Quatro Coordenadores de Pedagogia (à direita) e seu Diretor (à esquerda).
4. Contratação e Seleção de Lideranças Escolares: além de mudar o papel dos líderes escolares, Sobral também mudou o processo de seleção e contratação deles. A distribuição dos cargos das lideranças escolares costumava ser político, marcado por nomeações baseadas em clientelismo político e alianças não pedagógicas. Após as reformas, os líderes escolares passaram a ser selecionados com base em critérios técnicos e habilidades para liderar uma escola.
5. Material Didático: em Sobral as crianças de uma mesma série utilizam o mesmo material didático em todas as escolas da rede. São livros e apostilas desenvolvidos por uma equipe de especialistas da Secretaria de Educação. Os materiais estimulam o desenvolvimento de habilidades cada vez mais complexas, com exercícios projetados com base em evidências, e mais eficazes para promover aprendizado. Os professores também usam um guia comum que descreve uma sequência de objetivos de aprendizagem específicos para cada disciplina, mas eles têm a liberdade de criar seus próprios planos de aula. Os livros de exercícios e os guias de aula garantem que eles promovam o aprendizado dos alunos por meio de um currículo alinhado à base comum curricular brasileira.
6. Fluxo de Conhecimento Através do Sistema: uma vez por semana, todos os líderes escolares da cidade se reúnem na Secretaria de Educação do município. Nesta sessão semanal de quatro horas, eles compartilham sucessos e desafios, trocam dados sobre todos os seus alunos, além de abordarem práticas e/ou ferramentas úteis para todos. Os professores também têm um tempo dedicado todas as semanas para se reunir com seus pares e trocar sobre seus planos de aula. Em uma semana de trabalho de 40 horas, são 32 horas em sala de aula e 8 horas reservadas para o planejamento de aulas, reuniões com outros professores e treinamento.
7. Começando Cedo e Priorizando a Saúde: no Brasil, todas as crianças são obrigadas a frequentar a pré-escola dos 4 aos 6 anos. No entanto, em Sobral também são oferecidas creches para crianças de 1 a 3 anos. Os espaços seguros para bebês e crianças pequenas, os protegem de eventuais violências domésticas – o que pode trazer benefícios para toda a vida, pois traumas domésticos pioram os resultados do aprendizado a longo prazo. Sabemos que os primeiros três anos de vida são particularmente críticos para o crescimento do cérebro e do corpo de bebês e crianças pequenas. Sobral decidiu investir na educação infantil para expor as crianças pequenas a mais palavras desde cedo, o que contribui para que sejam leitores mais preparados. Como todas as escolas do Brasil, as de Sobral oferecem um lanche diário gratuito para todos os alunos e também contam com a visita de agentes de saúde que ajudam a diagnosticar aqueles que precisam de óculos e outros cuidados.
Alunos durante o recreio em uma pré-escola (Centro de Educação Infantil).
8. Avaliação e Acompanhamento Frequentes e Suporte Intensivo: os alunos fazem avaliações a cada dois meses. Os professores usam esses dados para acompanhar o aprendizado e as dificuldades dos estudantes. Alunos que necessitam de um maior apoio recebem uma formação intensiva suplementar. Esse acompanhamento ajuda a Secretaria de Educação e os Coordenadores de Pedagogia da cidade a ter uma noção clara do progresso da rede.
Dois pontos me surpreenderam totalmente:
9. Mínimo Uso de Tecnologia: ouvimos muito sobre o poder da tecnologia para aprender em escala, mas o modelo de Sobral é feito quase inteiramente no papel, analogicamente! Todos os alunos escrevem seus questionários e exercícios à mão, e os professores fazem o mesmo nas suas coletas de dados para a secretaria de educação. Isso me fez perceber que as mudanças sistêmicas não necessariamente precisam envolver software sofisticado, tablets caros ou sugerir que professores mudem seus hábitos para adotar tecnologia desconhecida.
10. Confiança e Orgulho: isso é difícil de explicar, mas dos Diretores de Escolas, aos Coordenador Pedagógico até o Secretário de Educação, todos são bastante orgulhosos de fazerem parte dessa história – é possível notar esse forte sentimento. Podemos dizer que eles têm o que os especialistas chamam de alta autoeficiência, ou seja, a crença de que podem fazer isso. Estive em tantas escolas onde os líderes falam sobre o quão difícil é seu ambiente – o que é muitas vezes justificado, porque eles geralmente merecem melhores condições escolares e melhor tratamento por parte da gestão pública! Mas o que existe de diferente em Sobral é que os líderes sabem que fazem parte de algo maior, importante e que está dando certo. E quando enfrentam desafios buscam encontrar uma solução. Foi tão revigorante ver esse tipo de postura confiante. Claramente, o esforço de reforma está fazendo algo para desenvolver esse tipo de autoeficiência em todos os envolvidos – seja intencionalmente ou não. Isso é difícil de medir, mas acredito que seja um ingrediente chave para o sucesso de Sobral.
Professores conversando com convidados durante um círculo de leitura.
Muitas organizações estão se inspirando nos métodos de Sobral, aplicando-os em outros sistemas de ensino. Cid Gomes, quando foi governador do estado do Ceará, implementou abordagens semelhantes em todo o estado. A Associação Bem Comum capacita lideranças de outras localidades a partir dos aprendizados de Sobral (CE). E o Centro Lemann está, no seu primeiro ano de atuação, formando mais de 2.100 líderes educacionais, de 56 municípios do Brasil e em países como Quênia e Paquistão. Em 15 anos, o Centro pretende chegar a todas as redes de ensino municipais e estaduais do Brasil.
O sistema de Sobral definitivamente não é perfeito. Entrei em uma sala de aula onde uma briga entre os alunos acontecia enquanto um professor estava do outro lado da sala. Os resultados da cidade no ensino fundamental e médio não são tão fortes quanto os resultados no ensino fundamental. Como a maioria das escolas brasileiras, muitas de Sobral não são de tempo integral (Sobral está em processo de expansão do período integral para todos os alunos). Além disso, críticos dizem que o foco incansável do município em fazer com que todos saibam ler e escrever na idade certa faz com que as crianças pequenas tenham menos tempo livre e momentos dedicados ao brincar.
No entanto, Sobral quer melhorar continuamente e encara essas críticas como oportunidade. Suas reformas até agora mostram que, mesmo em um ambiente difícil com recursos e desafios semelhantes a outras cidades, líderes educacionais podem promover reformas contundentes em um intervalo de 15 anos. Para os interessados em promover melhoras na educação básica e pública, há muito o que se aprender com esta cidade no interior do Brasil.
Para se aprofundar na metodologia e na reforma educacional produzida por Sobral, leia os estudos de caso aprofundados da RISE (aqui e aqui) e do Banco Mundial.
(O espaço para a publicação desse artigo foi cedido e as opiniões pessoais aqui apresentadas pertencem exclusivamente à autora e não ao Centro Lemann.)